10 fevereiro, 2010

Ainda sobre o acordo ortográfico...

Na minha incursão sobre o tema do acordo ortográfico, quis saber qual era a opinião de um dos mais conceituados escritores lusófonos que usa de uma linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, introduzindo uma série de termos e de expressões únicas, inventadas por si, para (melhor) descrever o seu mundo sonhado: Mia Couto.

Afirma o autor que o “acordo ortográfico não é necessário”.

Isto dito por alguém que goza da maior liberdade para (re)criar a língua portuguesa…

Para contextualizar esta posição, aqui fica um texto, do escritor, sobre o acordo ortográfico:

"Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
· Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
· No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
· A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
· O mato desconhecido é que é o anonimato?
· O pequeno viaduto é um abreviaduto?
· Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
· Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
· Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
· Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
· O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
· Onde se esgotou a água se deve dizer: 'aquabou'?
· Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
· Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
· Mulher desdentada pode usar fio dental?
· A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
· As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: 'finanças'?
· Um tufão pequeno: um tufinho?
· O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
· Em águas doces alguém se pode salpicar?
· Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
· Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
· Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
· Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.Devolver a estrela ao planeta dormente"
.


(Amanita Muscaria)

1 comentário:

Anónimo disse...

Mia Couto e o Acordo Ortográfico.
Com relação ao acordo ortográfico, não conheço em pormenor os detalhes que incorpora ao que já existia, mas, em princípio, acho bem que a língua portuguesa seja o mais unificada possível em todos os países onde se fala, tanto a nível de ortografia, como de sintaxis ou mesmo nas entradas que aparecem nos dicionários. Isso só será positivo para a globalização da língua e, por conseguinte, para que se mantenha viva e prospere tanto entre os seus falantes como em possíveis outras pessoas que queiram aprende-la com fins comerciais, lúdicos u outros.

Sobre o artigo de Mia Couto, é minha opinião que ele se aproveita da circunstância para tirar da gaveta umas quantas “coisas” que ele tinha escrito e, talvez, não tivesse encontrado melhor altura para as publicar. Se fossem escritas em espanhol, chamavam-se “greguerías”. É um termo criado pelo escritor Ramón Gómez de la Serna (século XX) para definir uma frase breve, uma metáfora brilhante, cheia de agudeza e humor, uma intuição das relações que existem entre as coisas, e que sempre têm em comum uma grande trivialidade. Do meu ponto de vista, Mia Couto não acrescenta nada em relação ao tão falado acordo ortográfico.